
Fontes culturais da música em Goiás 3 - Modinhas Tradicionais
Modinhas diversas interpretadas por Maria Augusta Calado (soprano) e Maristela Cunha (piano) - Lado A e Maria Augusta Calado (soprano) e Márcio Alencastro Veiga (violão) - Lado B
Gravação dias 14 e 15 de maio de 1983, no auditório da Faculdade de Educação da UFGO. Microfones AKG D 1200, gravador Revox A77. Fita Maxell UD-KL. Mixagem e edição no Estúdio Tacape de São Paulo, 18.05.1983. Gravação, mixagem e supervisão da edição: Conrado Silva. Fotografias: Alencastro Veiga (Goiás, 1908), arquivo goiano, Salomão Rodrigues. Arte final: Ary Luiz Bon. Filmes da Polychrom. Produção: Maria Augusta Calado. Edições Tacape (Caixa Postal 112 - 36300 São João del-Rei). Brasil, 1983.
Capa e Encarte
Textos do Encarte
FONTES CULTURAIS DA MÚSICA EM GOIÁS — 3
Modinhas tradicionais
TACAPE Série memória musical — estéreo — T 011
FACE A
Modinha (1840) 2'01"
Só 2'01"
Serenata 2 — Aos frouxos raios da lua 3'27"
Serenata 1 — A brisa corre de manso 3'01"
Vai ó sensível saudade 2'52"
Soprano: Maria Augusta Calado
Piano: Maristela Cunha
FACE B
Tu és o lírio 3'29"
Eu penso em ti 3'13"
Ah! não durmas, desperta donzela 2'06"
Virgem vaidosa 3'38"
Venho de longe 2'08"
Distante da pátria 2'44"
Soprano: Maria Augusta Calado
Violão: Márcio Alencastro Veiga
As partituras de Vai ó sensível saudade e A brisa corre de manso pertencem ao Arquivo de Goiás; todas as outras, também escritas ou copiadas em Goiás, pertencem ao Arquivo da Banda Phoenix de Pirinópolis, gentilmente cedidas pelo maestro Bras Wilson Pompeu de Pina Filho.
O interesse da Universidade de Goiás na preservação da memória cultural goiana está na origem da edição desta série de três discos, marco inicial da coleção FONTES CULTURAIS DA MÚSICA EM GOIÁS.
É importante ressaltar dois aspectos fundamentais desta realização: por um lado, trata-se de ação concreta com vistas à difusão de trabalhos realizados por pesquisadores ligados à universidade e, como tal, análoga à publicação de monografias e teses; por outro lado, com exceção das modinhas goianas gravadas em auditório convencional, o material aqui reunido foi recolhido em diferentes momentos de exaustiva pesquisa antropológica, sem intenção de montagem de disco. Apesar de alguma imperfeição técnica, optou-se por utilizar estas gravações realizadas no curso da pesquisa de campo, conservando-lhes todas as características de documentos de trabalho, sem maiores manipulações de estúdio. No caso da docu-mentação indígena e negra, de dezenas de horas de registro direto de diferentes manifestações musicais, foi feita uma seleção de momentos que, se não cobre toda a realidade, pode dar flagrantes de algumas de suas facetas.
A coleção FONTES CULTURAIS DA MÚSICA EM GOIÁS compõem-se, em sua fase inicial, dos discos Música Indígena, Música Religiosa em Comunidades Negras e Modinhas Tradicionais.
Os méritos da pesquisa e dos registros cabem, exclusivamente, à antropóloga e professora Mari de Nasaré Baiocchi e à cantora e professora Maria Augusta Calado, que assinam os textos analíticos nos encartes dos discos.
MARIA DO ROSÁRIO CASSIMIRO
Reitora da Universidade Federal de Goiás
UFG/SESU - MEC
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
MODINHAS TRADICIONAIS
MODINHAS
Em Goiás, a modinha talvez tenha chegado logo após os bandeirantes, entrenhando-se no âmago da sensibilidade vilaboense, tendo seu florescimento se caracterizado por uma estrutura e linha melódica popular, reflexo do grupo social em que conviveu, pois o vilaboense sempre manteve um comportamento popular, mesmo intelectualizando-se. Chegaram na antiga capital, através do povo, fossem aventureiros, tropeiros, viajantes, cometas ou estudantes, percorrendo diferentes caminhos que partiam dos mais distantes pontos do país, formando quatro troncos distintos: o caminho baiano, o mineiro, o paulista e o paraense. Através destes caminhos circularam as influências que vieram contribuir no acervo modinheiro goiano. O caminho baiano passava pelo antigo caminho do ouro em busca de portos do mar desde os tempos da primeira capital brasileira. Da Bahia, a partir de 1871, começaram a chegar os notáveis magistrados que influenciaram a formação vilaboense.
O caminho mineiro, percorreu a zona igualmente de mineração e modinheira. Nossos viajantes passaram por São João Del-Rei, Montes Claros, Diamantina e Paracatú. Muitos juízes goianos como Feliz de Bulhões militou em São João Del-Rei e Maurilio Augusto Curado Fleury militou em várias cidades mineiras.
O primeiro foi modinheiro, o segundo era marido de Julieta Augusto Curado Fleury, cantora e divulgadora das modinhas goianas em terras mineiras. A modinha vilaboense apresenta semelhança com as mineiras mas possui interpretação própria. O caminho paulista, o dos bandeirantes, veio a ser a estrada real por onde passaram nossos estudantes em busca da Faculdade do Largo de São Francisco. Ao regressarem traziam em sua bagagem, as mais novas modinhas aprendidas na convivência estudantil, citamos Leopoldo de Bulhões que fora colega de Afonso Celso. Devemos observar que pelo caminho mineiro e pelo caminho paulista, passaram os que se destinavam à corte. Através da navegação do rio Araguaia, estabeleceu-se o caminho paraense que nos trouxe, além da mercadoria estrangeira, ... modinhas.
Um povo simples o vilaboense, pelo seu isolamento e pela sua formação, alicerçaram uma sociedade peculiar. Antes, bandeirantes aventureiros buscando o ouro para o enriquecimento do Reino, não para o seu próprio. A partir de 1800 as gerações nascidas na terra tomam consciência de sua condição de goianos, despertando então o desejo de autonomia, formação cultural. Na pós-mineração a condição de capital do Estado, favoreceu a constituição de uma sociedade de funcionários públicos, comerciantes e militares. Em sua maioria não acumularam bens e este fator aliado ao isolamento da região e ao entrelaçamento das famílias, permitiu que ficassem vinculados a procedimentos que são próprios do povo e esse caráter foi transmitido às modinhas que conservaram seu modelo popular, mesmo ouvindo os gorgeios das áreas operísticas que eram apresentadas no Teatro São Joaquim, nos salões do palácio Conde dos Arcos e nos solares. Rejeitaram o acompanhamento do piano e quando se insiste em introduzi-lo, a modinha vilaboense perde sua beleza e graça. Talvez justamente a não permissão do acompanhamento erudito, foi que manteve o seu caráter popular.
Mas isso não impediu que um filão elitizado aflorasse, oferecendo algumas páginas modinheiras mais elaboradas, vindas de outras cidades brasileiras, na bagagem de alguns caminheiros. Partituras impressas ou manuscritas, vindas de longe, circulam com frequência pelos salões goianos, porém permaneceram até nossos dias somente cinco, escritas para piano e canto, sendo duas em manuscrito originais de Goiás e as outras sendo uma cópia
feita por Maria de Nazareth Xavier de Barros Azeredo, datada: Goiás 1897. As outras duas são impressas sem referência. Nas outras três, identificamos uma baiana e duas baiano-mineiras. Por achar importante introduzir o ambiente musical vivido nesta região, mostrar as músicas que lá foram cantadas e ouvidas, revelando o repertório da época com as influências baiana e mineira, é que as incluimos em nossa ilustração.
Em Goiás, a referência mais antiga sobre modinhas foi feita por Saint-Hilaire em 1819 mas, documentada, só temos: Quando eu me separar, de 1840, que nos traz presente a melodia, o estilo e poesia de uma remota época, uma autêntica modinha do passada Nela está escrito: "1840 — Feita a 23 de janeiro em Goiás — Pertence a Jacinto Ferreira Rêgo". Estes dizeres são um tanto ambíguos, pois tanto pode ter sido composta ou copiada em Goiás e Ferreira Rêgo o compositor ou o copista. Parece ter sido escrita para cravo e esta hipótese é reforçada pelo depoimento de Maria Augusta Fleury de Britto (1879 — 1976) que disse que sua mãe possuíra um piano como mesa.
Só, letra e música de Antônio Félix de Bulhões (1845 — 1887) composta em 1885, é uma das mais populares em Goiás, porém com o acompanhamento de violão. Já foi gravada pela Marcus Pereira em Modinhas Goianas (vilaboense) com a instrumentação de flauta, bandolim e violão que oferece um apoio harmônico a um canto espontâneo. A partitura para piano, datada de 1894 expõe outro caráter. Quando o piano é o acompanhante, ela toma outra interpretação, sendo esse o motivo da re-gravação, para que se possa comparar os dois estilos. Félix de Bulhões foi o melhor poeta do romantismo goiano e sua modinha Só transmite na letra e música, sua força romântica.
As modinhas de outras plagas, além de revelar o ambiente musical vilaboense, despertam o interesse de seu local de origem.
Vai ó sensível saudade modinha impressa no Álbum das senhoras — Bahia, de Francisco Magalhães Cardoso, o "célebre poeta e mavioso cantor" tão enaltecido por Guilherme de Melo que ressaltou sua sensibilidade e inspiração, a riqueza das suas frases melódicas. Além desta, encontramos ainda de sua autoria nos "cadernos de modinhas" vilaboenses, "Se foi no doce de um cismar saudoso", porém, desta só encontramos a letra e as cantoras não foram capazes de recordar esta melodia.
As duas outras partituras encontradas, são de A. Cardoso de Menezes. Este músico modinheiro é registrado por Guilherme de Melo como baiano. Suas duas modinhas apresentam a mesma construção de idéias melódicas, o mesmo motivo da introdução repetido no final, possuem o mesmo compasso e mesma tonalidade.
Aos frouxos raios da lua (Serenata 2) é uma cópia manuscrita datada de Goiás 1897, porém não conseguimos identificar o autor da letra; mesmo no livro de Júlia de Brito Mendes não encontramos o poeta.
A brisa corre de manso (Serenata 1) possui partitura impressa pela E. Bevilaqua, registra poesia de J. Campos Carvalho. Este poeta, segundo Aires da Mata Machado Filho, foi um poeta diamantinense.
Nas modinhas populares vilaboenses, encontramos simplicidade poética e melódica. Há uma predominância do compasso 6/8, podendo-se dizer que é uma marca vilaboense essa tendência de cantar em 6/8. Num confronto com as variações de algumas modinhas colhidas em outras regiões no compasso 4/4, em Goiás foram todas estas colhidas no languido 6/8. Porém esse andamento somente os antigos cantores é que apresentam, pois os novos já as cantam no compasso 3/4 influenciado pela valsa.
Poetas e músicos compunham para extravazar suas almas românticas, não se preocupando com a identificação de sua obra, mas algumas, que falaram mais forte na alma vilaboense, mantiveram oralmente a sua autoria. Das seresteiras que selecionamos, três são anônimas, porém delas podemos encontrar alguma variação em outros Estados. Singelas, lembrando donzelas e amores frustrados, foram sucesso no tempo das senhorinhas.
Escolhemos três com autoria, duas atribuídas a Luiz do Couto (1888 — 1948), falam uma linguagem romântica capaz de se identificar com qualquer personalidade romântica brasileira. A outra, modinha de Joaquim Bonifácio (1883 — 1923), poeta que amou sua cidade e a ela dirigiu seus versos que emolduravam na melodia sentida e expressiva deste incomum modinheiro que foi Joaquim Sant'Anna (1882 — 1915).
MARIA AUGUSTA CALADO
Modinha
(Goiás, 1840) Jacinto Ferreira Rêgo
Quando eu me separar
De um bem a quem adoro
Irei exalar aflito
Na cabana onde moro
Pedindo ao céu
O seu socorro
Tem piedade
Eu quase morro
Só
(Goiás, 1885) A. Félix de Bulhões
Parei! chegado havia ao cimo da montanha
Aspérrima e tamanha
O sol morria além!
Parei!
sentei-me só à beira do caminho.
Sentei-me ali sozinho
Eu só, sem mais ninguém...
Olhei atrás e avante, os largos horizontes
Que debruçavam nos montes
Longes, por além,
De branco, azul e fogo e púrpura toucados
Diziam, contristados
Tu só, sem mais ninguém.
Serenata 1 — A brisa corre de manso
Poesia — J. Campos Carvalho
Música — A. Cardoso de Menezes
A brisa corre de manso
Por entre as sombras d'além
O mar se mov'em balanço
As ondas correndo vem!
E tu desprendes as tranças
Ao sopro do vento sul
E choras as esperanças
Nesses teus olhos d'azul
Quando a matina surgindo
Nos rubros frócos de luz
Traz os cabelos fugindo
Como as legendas da cruz;
Falas d'amor em delírio,
Fitas louca a imensidade...
Só te responde o martírio,
Fala-te a voz da saudade!
Serenata 2 — Aos frouxos raios da lua
A. Cardoso de Menezes
Aos frouxos raios da lua.
Que se derramam no ar
Vai deslizando a falua
No liso espelho do mar
Ao longe por entre as fragoas
Ao sopro da viração
Murmuram brandas as águas
Misteriosa canção
No azul do céu transparente
Todo inundado de luz
A face do Onipotente
Em cada estrela transluz
Tamanha serenidade
No céu na terra no mar
Terna suave saudade
N'alma nos faz despertar
De nossos lábios se exalam
Murmúrios do coração
Linguagem que as almas falam
Em fervorosa oração
Por isso, fitando a lua
Que resplandesce no ar
Deixo vagar a falua
No liso espelho do mar!...
Vai á sensível saudade
Francisco de Magalhães Cardoso
Vai ó sensível saudade
Prescrutar, prescrutar meu coração
Vê se resolves ó ingrata,
A me dar, a me dar um sim ou não.
Se fé mentida
t'abandonar
Volta à meus lares, volta à meus lares
que eu sei t'amar
Vai ó flor, te ordeno flôr.
Tu és o lírio
Atribuída a Poesia — Luiz do Couto
Música Joaquim Sant'Anna
Tu és o lírio dos amenos vales
Abrindo o cálice ao dourado albôr
Eu sou a rocha onde o sol não brilha
De ignota ilha do oceano a flôr
Tu és a nuvem, peregrina e bela
Que nos revela o dourado albôr
Eu sou o cisne que procura as águas
Chorando as mágoas do primeiro amor
Tu és formosa reluzente estrela
Pura, singela, de vivaz fulgor
Eu sou o vate de amor perdido
De amor descrito, mas buscando amor
Tu és a espuma formosa envolvida
Em mil ondas de luz do luar
Eu sou a concha que vaga perdida
Pelas praias imensas do mar
Eu penso em ti
Atribuída a: Poesia — Luiz do Couto
Música Joaquim Sant'Anna
Eu penso em ti, oh! criatura amada
Em horas mortas de tristeza e dor
Eu penso em ti ao desmaiar da tarde
Quando estremece e vai morrendo a flor
Eu penso em ti, oh! sim porque te amo
Como a brisa os matinais orvalhos
Como a alvorada que desperta os ninhos
Todos trementes nos pendidos galhos
Eu penso em ti, em madrugada fresca
Tinta de ouro, virginal gentil
Eu penso em ti ao balançar das folhas
Pelas suaves virações de abril
Se vier a morte que está breve, creio
Ceifar os dias que infeliz vivi
Minh'alma longe deste mundo inquieto
Irá pensar eternamente em ti...
Ah! não durmas, desperta donzela
Ah! não durmas, desperta donzela
vem a triste canção escutar
vai a lua no céu em caminho
brilha ao longe a estrela polar
Tudo dorme é silêncio na terra
Só meu peito de amor faz vibrar
A canção que só saudade encerra
E que vou desferindo ao luar
Ah! desperta, não durmas donzela
Vem ao menos ouvir meu cantar
A canção maviosa e singela
Que cantando eu vou ao luar
Virgem vaidosa
Virgem vaidosa do que vale a seda
Que o pó consome nos salões da inveja
Deixa a existência de fugazes sonhos
Vem a ver a rosa que a manhã bafeja
Se descuidosa no buscar enganos
Arfar tua alma que o prazer induz
Olha as abelhas que ligeiras correm
E trêmulas fogem e vão morrer na luz
Virgem vaidosa oh! não creias nunca
Em ilusões que não fazem bem
Olha as estrelas que no céu se apagam
São como os astros a mulher também.
Venho de longe
Venho de longe bem longe
Somente para te ver
Se estais dormindo acorda
Vem meu anjo socorrer
Acorda já que dormes
neste belo sonho e doçura
Acorda chegue à janela
Vem ver a lua no céu como é bela
Venho de longe, bem longe
Com esperança futura
Venho tirar teu retrato
No belo clarão da lua
Venho de longe, bem longe
Como a andorinha perdida
Venho a procura do ninho
Para o descanso da vida
Distante da pátria
Poesia — Joaquim Bonifácio de Siqueira
Música — Joaquim Sant'Anna
Distante da pátria
Sozinho e saudoso
Senhor, doloroso me torna o viver
Em plagas alheias
Alheias cidades
Doridas saudades me vão acolher
Senhor, concedei-me
Em troca das fundas
Angústias profundas que agora me dás
Que possa o meu corpo
Que a sorte desterra
Dormir na terra que guarda meus pais
MINAS DOS GOYAZES - GOYAZ GOIÁS (1)
Condições históricas peculiares, a distância da Costa, do Poder Central, dos centros de abastecimento e sua posição mediterrânea preservaram o patrimônio cultural ancestral e o legado dos povos índios, brancos e negros, no Estado de Goiás, apesar da destruição realizada "na busca de riquezas", ontem e hoje.
Há 10.000 a.C., quiçá mais, em seu território, caçadores usavam o arco e a flecha. Moradores de grutas e abrigos nas rochas, agricultores do machado de pedra lascada ou polida, construtores de aldeias deixaram mensagens as pinturas, os petroglifos (2). Escreviam no livro da vida a sua história.
As crônicas e documentos da conquista de seu território, desde as primeiras incursões onde sobressaem os Jesuítas até a colonizarão e ocupação definitiva no século XVIII - realizada pelos Bandeirantes paulistas, Bartolomeu Bueno da Silva e João Leite da Silva Ortiz - atestam a extensão de seu povoamento. Nos mapas, os conquistadores localizam grupos tribais em todo o território goiano, a terra está ocupada, porém objetivos outros (o minério, as Pedras preciosas, braços para o trabalho escravo) geram no branco a determinação, a coragem de rasgar caminhos, transpor serras e rios caudalosos, enfrentar feras e matas escuras, onde a qualquer momento terão que se haver com os seus habitantes realizam a Epopéia Bandeirante.
Os primeiros arraiais são iniciados - centros de garimpo da empresa mineradora: Arraial da Barra, Minas de Nossa Senhora de Santana de Vila Boa, Ouro Fino, Ferreiro, Anta, Santa Rita e Meia Ponte (3), A fé comparece, erguem-se as capelas, depois as igrejas, onde o índio e o negro que aqui veio como escravo pára trabalhar na mineração, sobressaem como artífices de um colonial genuíno, despojado: Igreja da Boa Morte, Nossa Senhora do Rosário dos Pretos (4).
A Província Goiana, com as Províncias de Minas Gerais, de Mato Grosso, da Bahia e uma parte da Província de São Paulo, compõe a regulo mineradora que, a partir do século XVIII, domina a economia nacional, atendendo aos interesses d’Além mar Portugal, Inglaterra...
O povoamento e a colonização prosseguem violentos e audazes, a seda do ouro move a todos. "A economia das minas provoca a imigração de milhares de pessoas pata o Brasil e partas regiões auríferas. Cada ano vêm nas frotas grandes quantidades de portugueses e estrangeiros, para as minas das cidades, vilas, recôncavos e sertões do Brasil; vão brancos, pardos e pretos, e muitos índios, de que os paulistas se servem. A mistura é de toda condição de pessoas: homens e mulheres, moços e velhos, pobres e ricos, nobres e plebeus, seculares, clérigos e religiosos de diversos institutos, muitos dos quais não' têm no Brasil convento nem casa" (5).
No século XIX, após a mudança do eixo econômico para a agropecuária, incrementa-se o processo de ruralização. Os arraiais são abandonados, embora desde o inicio não tenham constituído centros urbanos definitivos: "O povo andava flutuando como um navio impelido pelo vento; quando se descobria uma mancha ou pedreira rica de ouro, corria àquele lugar imensa gente de todas as cores... e desaparecia, apenas o metal também se acabava ou a sua extração era dificultosa... No Distrito de Pilar existiam mais de 9.000 escravos, no dia de hoje toda a sua população monta a menos de 3.000 almas, inclusive os escravos" (6).
E assim, despovoa-se o meio urbano, agonizam as vilas e povoados – “os arraiais da Barra, Santa Rita, Ferreiro, Ouro Fino e outros são montes de ruínas, a cidade mesmo (Vila Boa, a capital já foi mais extensa e populosa)" (7). O processo de ruralização efetiva a verdadeira conquista territorial. Grupos de famílias internam-se no sertão e fixam-se em grandes e pequenas unidades produtoras as fazendas de criação, as roças e os sítios. A agricultura de subsistência e o criatório expande-se. O norte goiano mantém a primazia no criatório, milhares de cabeças de gado vacum e empatar são criados à larga. Já a lavoura privilegia o sul.
O contratador, o mineiro, o faiscador desaparecem do cenário, o escravo continua... e com ele o roceiro, o agregado, o camarada, o sitiante, o parceiro, o fazendeiro, o coronel, acompanhando a substituição das minas pela lavoura e a pecuária. A terra passa a representar o bem maior, instituem-se os muros de pedra e os regos para separação das propriedades. O criatório extensivo expande-se sem cessar Nordeste, Noroeste, Centro e Sudoeste.
Nascem novos arraiais, seguindo um ciclo evolutivo mais fixo à terra goiana com tendência a perdurar, o que em muitas vezes não aconteceu na mineração. Levas de paulistas, mineiros, baianos... aqui vêm se instalar. A população de 53.322 habitantes em 1804. chega a 255.000 em 1900.
O movimento anti-escravista agita o meio urbana e leva a mulher a realizar saraus para a liberdade. Os Partidos e organizações incrementam-se. Nascem jornais (AImanach, 1886), escolas (O Lyceu, 1847), teatros, conjuntos orquestrais. bandas de Música, bibliotecas, faculdades.
Publicam-se livros, surge a literatura regionalista (8), refletindo a realidade cultural... O eito, o garimpo, o folclore, o coronel, o lavrador. As três primeiras décadas do século XX representaram um marco na cultura goiana. Mais jornais, revistas, saraus literários. Discussões nas Faculdades. Movimentos Políticos. Revolução de 30... E mudam a capital. Goiânia, inaugura-se em 1942. Funda-se o Museu Zoroastro Artiaga, o Departamento Estadual de Cultura (1946). Surgem as Universidades...
Documenta-se a memória histórica, delineia-se, e registra-se a cultura goiana.
Novos surtos migratórios: árabes, alemães, italianos, suíços, japoneses, russos, poloneses, tchecoeslovacos, húngaros... vêm contribuir na nossa formação cultural...
Goiás de portas abertas!
Nesse cadinho de povos vários, de mesclada procedência, faz-se a miscigenação biológica e cultural, nas margens do Berohocã (9). Tocantins, Paraná. No Mato Grosso goiano, nas serras e vales, nos aldeamentos, arraiais e vilas... Goiás - amálgama de povos bulias, negros e brancos.
Nos seus quase três séculos de existência (1722), gera o homem da terra: mamelucos, mulatos, cafusos, cabra e o tipo pardo, o tipo goiano, e conserva ainda seu primitivo dono, o indígena, nos aldeamentos Karajá, Xerente, Apinayé, Krahó. E. nos platôs e vales de suas serras e chapadas, guarda os descendentes dos filhos d'África. Gera a cultura, a cultura da terra, que este pequeno retrato não poderá sintetizar... será um close apenas...
Duzentos e vinte e três municípios formando uma sinfonia cromática entrelaçam culturas. O calendário de 365 dias torna-se pequeno para as multifacéticas manifestações de suas tradições, seu folclore.
As Folias de Reis, Festas de São Sebastião iniciam o ano, preâmbulo para o carnaval e o retraimento da quaresma, pois as mulas sem cabeça, os Romãozinhos (10) andam soltos. E preciso ler cuidado! Rezar e benzer (11).
As matracas, no seu tac-tac, anunciam a Semana Santa (cidade de Goiás). De maio em diante, quando a brisa estria, o céu aparece mais, os dias se perdem entre o desmaiar do sol e o nascer da lua, a maior colheita está feita e os lavradores da terra e do gado podem entrar em intermezzo necessário para recobrar energias e outras coisas mais: começam as Novenas para Nosso Senhora, Santo António (das moças solteiras). São João e São Pedro. Folias do Divino, Desobrigas, Cavalhadas, Congadas, Contradança e as Romarias: Trindade (05/07), Bonfim, Muquém, da Lapa, Terra Ronca, das Almas, D'Abadia e infinidades delas menores em grandezas.
E o Divino seja louvado!
Nas romarias, assiste-se ao encontro de milhares e milhares de pessoas, devotos contritos pagando promessas, pagando apostas, trocando mercadorias - hábito de sociedades agropastoris (as feiras do medievo?).
Praças, templos, grutas, campo aberto, matas, tudo se transforma. Erguem-se abrigos provisórios, barracas de todos os tipos e tamanhos, e o comércio intensifica-se: troca-se ou vende-se de tudo nos butecos e quiosques improvisados ou particularmente mascates, doceiras, quitandeiras...
Os romeiros chegam do norte, sul, leste, sudoeste e nordeste goianos, como também da Bahia, de Minas e de outros Estados...
Nasce uma cidadela! E, naqueles dias, só entra em pauta a vida que ali se instala. O Sagrado e o Profano se intercalam, os ritos se sucedem: batismos, crismas, noivados, casamentos e.. mesmo morte. Ao lado da liturgia e dos cânticos religiosos, os fogos estouram, a viola e a palma marcam a catita. O tambor, a russa, as rezas, Comerciam, dançam e amam!
E eis o retrato possível!
Mari de Nasaré Baiocohi
Notas:
1. Denominação dada ao atual Estado de Goiás.
2. Baiochi, M. N. nventário Arqueologico do Estado de Goiás. Oriente. Goiânia. 1972.
3. Teixeira, Amália Hermano História de Goiás. In: Enciclopédia Delta Larousse. Rio de Janeiro, Delta, 1960, v. 6, p. 3099-4001
4. Baiocchi, M. N. Inventário Arqueológico do Estado de Goiás. Oriente, Goiânia. 1972.
5. Antonil, André João Cultura e Opulência do Brasil por suas drogas e Minas. Rio de Janeiro. Cons. Nac. de Geografia. 1967.
6. Mattos, Raymundo José da Cunha Chorografia Histórica da Província de Goy Lider, Goiânia, 1979
7. bid
8. Ramos, Hugo de Carvalho Obras completas. Coleção Panorama da Literatura, shed. v. 3. São Paulo. 1949
9. Uma das denominações do rio Araguaia (Tarajá)
10. Lacerda, Regina Seleção. Antologia Ilustrada do Folclore Brasileiro. Estórias e Lendas de Goiás e Mato Grosso, 2a. ed. Edigraf Ltda, p, 80. sld
11. Mota, Atico Vilas-Boas da Rezas, Benzeduras Oriente. Goiânia, 1977. Imagem de São João