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No Balanço do Ganzá

Chico Antônio

Track NameNo Balanço do Ganzá
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Gravação de som realizada no Sítio das Porteiras, município de Pedro Velho, Rio Grande do Norte, nas casas de Chico Antônio e de seu filho Antônio Francisco Moreira, nos dias 28 de agosto e 26 de setembro de 1982, por José Maria Neves e Conrado Silva (dois microfones AKG D310 e dois microfones AKG D1200, gravador Sony TC-D5, fitas Scotch e Scoth Classic). Montagem de fita no Estúdio Tacape-SP. Corte na RCA, a 11 de outubro de 1982.

Fotos da capa e contracapa: Luiz Peregrino. Programação visual: Ana Monteleone e Vera Bernardes. Padronização e revisão de texto: Afonso Henriques de Guimaraens Neto. Arte-final. Rui Pitombo. Produção gráfica: Sérgio de Garcia. Assistente de produção: Guilherme Sarmento. Composição. Alvanir Ferreira Lima e David J. Santos. Montagem e supervisão de edição: Conrado Silva. Realização: Cecilia Conde e José Maria Neves

Capa e Encarte

Textos do Encarte

CHICO ANTONIO

No balanço do ganzá


TACAPE SÉRIE MÚSICA DOS POVOS – ESTÉREO T006

Este disco é o resultado do encontro entre dois grandes comunicadores brasileiros: Chico Antônio e Aloísio Magalhães.


Através da obra de Mário de Andrade, Aloísio tomara conhecimento da existência do coqueiro Chico Antônio, que costumava freqüentemente dar como exemplo do significado e abrangência da cultura do povo. A exemplo de Mário, Aloísio sabia meridianamente distinguir "as tradições móveis das tradições imóveis". "Aquelas são úteis", escreve em 1928 o autor de O turista aprendiz, "têm importância enorme, (...) porque elas se transformam pelo simples fato da mobilidade que têm. Assim por exemplo a cantiga, a poesia, a dança populares".


Ninguém mais móvel, ninguém mais prezador dessa tradição viva, em transformação, do que Aloísio, que tantas vezes recorreu à imagem do estilingue para exprimir a necessidade de um recuo aparente para o melhor entendimento de uma formulação projetiva: "quanto mais se estica a borracha para trás, mais longe vai a pedra".


Em Aloísio a mesma reivindicação de Mário: a de um movimento recíproco de maior conhecimento entre saber erudito e saber popular, através de uma atividade que provoque o "erguimento das partes que estão na sombra, pondo-as em condição de receber mais luz."


Cinqüenta e quatro anos depois de avistar-se com Mário, Chico Antônio vem a Natal ao encontro de Aloísio, que logo depois, no Rio, pede uma ação em torno da pessoa e do significado da pessoa do cantador em seu meio, através do Instituto Nacional do Folclore.


Este disco, onde pela primeira vez os cocos de Chico Antônio soam com a sua voz gravada, é uma das maneiras de dar prosseguimento ao desenho, ao desígnio cultural de Aloísio.


A ele se acrescentarão, ainda este ano, um pequeno jornal sobre o meio cultural e social do cantador-agricultor, e outras formas não-convencionais de comunicação que, na área da educação de base, melhor se adequem às aspirações da comunidade rural a que pertence Chico Antônio.


Esse resultado multiplicador, que espelha o coletivo a partir da individualidade, visa marcar tanto em Aloísio como em Chico Antônio a presença do artista junto à do comunicador. "O Boi Tungão", diz Chico a Deífilo Gurgel ao definir um de seus mais famosos cocos, "é a vontade do camarada cantar".


Foi uma vontade de criação semelhante que fez com que Aloísio desse forma à Secretaria da Cultura, modelando-a com a intuição do seu humaníssimo convívio e com a firmeza do fazer próprio do artista que conhece a fundo a matéria da sua linguagem.


LÉLIA COELHO FROTA

INF/Funarte




FACE A

1. Boi Tungão (refrão) Chico Antônio e Paulírio Ê tinguelê — Chico Antônio

2. Serrador, bota o pau na serra — Chico Antônio e Paulírio

3. Onde vais Helena - Chico Antônio e Paulírio

4. Usina (Tango-no-mango) Chico Antônio (refrão: Paulírio)

5. Ê Luquinha da lagoa — Chico Antônio e Paulírio


FACE B

1. Vou no mar — Chico Antônio e Paulírio

2. Curió da beira-mar — Chico Antônio e Paulírio

3. Pinto pelado — Chico Antônio (refrão: Paulírio)

4. Boi Tungão —Chico Antônio (refrão: Paulído)




Ministério da Educação e Cultura - Secretaria da Cultura - Fundação Nacional de Arte - Instituto Nacional do Folclore

Conservatório Brasileiro de Música do Rio de Janeiro

apoio : Universidade Federal do Rio Grande do Norte Projeto - Memória II - Fundação José Augusto




CHICO ANTÔNIO E EU


Eu conhecia Chico Antônio das páginas de O turista aprendiz, de Mário de Andrade. Só. Até o dia em que conheci Genar Bezerril, em Pedro Velho, aí por volta de 1979, numa pesquisa que fazia para a Fundação José Augusto. Conversa vai, conversa vem, Genar me diz: "Olhe, nós temos aqui um ótimo embolador, o melhor coqueiro que eu já vi cantando, Chico Antônio". Como no poema de Bandeira, fiquei parado, o coração batendo. Não era possível. Todas as notícias de Mário sobre Chico Antônio datam de 1929, no Engenho Bom Jardim, onde ambos foram levados por Antônio Bento de Araújo Lima, há cinquenta anos atrás. Portanto, Chico já devia ter desaparecido há muito tempo. Pelo menos, era o que eu imaginava. Mas, agora, me aparecia ali Genar Bezerril com aquela história de Chico Antônio vivo, cantando cocos nas feiras de Vila Nova. (Vila Nova é a antiga vila de Coitezeiras, atual Pedro Velho, no Rio Grande do Norte). Eu precisava confirmar urgentemente a informação. Naquela mesma noite, fomos à casa de Chico Antônio. Entrei lá, de gravador engatilhado. Feitas as apresentações, disparei a primeira pergunta: "Seu Chico, o senhor já esteve no Engenho Bom Jardim?" — "Já, doutor. Eu morei lá um ano, com o Coronel Araújo Lima". E, logo após, a pergunta fatal: "E durante o tempo em que esteve lá, lembra-se de alguma pessoa importante, que tenha ido ao Bom Jardim ouvir o senhor cantar?" — "Lembro, sim, foi o Dr. Mário de Andrade". Não tinha mais jeito. Era o homem mesmo. Estava identificado. Aliás, reidentificado. Depois disto, Chico Antônio transformou-se muito temem num patrimônio do domínio público, como não poderia deixar de ser. Veio a Natal, cantar em congressos e festivais; jornalistas do Sul foram entrevistá-lo em Porteiras, onde mora, e agora o Instituto Nacional do Folclore, atendendo a uma determinação de Aloísio Magalhães, vai divulgar a vida e a arte de Chico Antônio para todo o Brasil. Nada mais justo. Faz-se justiça assim a um dos maiores artistas populares brasileiros, cinqüenta anos vivendo no mais absoluto ostracismo, quando dele dizia Mário de Andrade: "Chico Antônio não sabe que vale uma dúzia de Carusos".


DEÍFILO GURGEL



MÁRIO DE ANDRADE ENCONTRA CHICO ANTÔNIO


Pra tirar o "Boi Tungão", Chico Antônio geralmente se ajoelha. Parece que ele adivinhou o valor artístico e social sublimes dessa melodia que ele mesmo inventou e já está espalhada por toda esta zona de engenhos. Então se ajoelha pra cantá-la. (...)


Estou divinizado por uma das comoções mais formidáveis da minha vida. Chico Antônio apesar de orgulhoso: "Ai, Chico Antônio/Quando canta/Istremece/Esse lugá." Não sabe que vale uma dúzia de Carusos. (...)

Que artista. A voz dele é quente e duma simpatia incomparável. A respiração é tão longa que mesmo depois da embolada inda Chico Antônio sustenta a nota final enquanto o coro entra no refrão. O que faz com o ritmo não se diz! Enquanto os três ganzás, único acompanhamento instrumental que aprecia, se movem interminavelmente no compasso unário, na "pancada do ganzá", Chico Antônio vai fraseando com uma força inventiva incomparável, tais sutilezas certas feitas que a notação erudita nem pense em grafar, se estrepa. E quando tomado pela exaltação musical, o que canta em pleno sonho, não se sabe mais se é música, se é esporte, se é heroísmo. (...)


Quase meia-noite e mandamos Chico Antônio parar. Ele se despede da gente com o "Pr'onde vais Helena". (...)

Principiou a cantar faz pouco e até onde o vento leva a toada, os homens do povo vêm chegando, mulheres, vultos quietos na escureza, sentam no chão, se encostam nas colunas do alpendre e escutam sem cansar. A encantação do coqueiro é um fato e o prestígio na zona, imenso. Se cantar a noite inteira, noite inteira os trabalhadores ficam assim, circo de gente sentada, acocorada em torno de Chico Antônio irapuru, sem poder partir. Toda a gente o imita e coco que ele cante se torna "coco de Chico Antonho", apesar de muitos não serem da invenção dele. (...)


Porque Chico Antônio não é só a voz maravilhosa e a arte esplêndida de cantar: é um coqueiro muito original na gesticulação e no processo de tirar um coco. Não canta nunca sentado e não gosta de cantar parado. Forma os respondedores, dois, três, em fila, se coloca em último lugar e uma ronda principia entontecedora, apertada, sempre a mesma. Além dessa ronda, inda Chico Antônio vai girando sobre si mesmo. Ele procura de fato ficar tonto porque, quanto mais gira e mais tonto, mais o verso da embolada fica sobrerrealista, um sonho luminoso de frases, de palavras soltas em dicção magnífica. Poemas que nenhum Aragon já fez tão vivo, tão convincente e maluco. É prodigioso. (...)


Mas Chico Antônio ultrapassa de muito os que tenho escutado, pela força viva do que inventa e a perfeição com que embola. Alto, corpo de sulista, magruço, meio lerdo no gesto comprido, com uma cara horizontal, bem chata e simpática, de nordestino em riba. Olhos maravilhosos, já falei. E a voz incomparável. Não é possível imaginar sons levemente anasalados, másculos, num decrescendo perfeito como os que Chico Antônio entoa no fim das frases do "Jurupanã. (...)


A tarde cai numa tristura que machuca, assom-brada pela saudade de Chico Antônio, partido faz pouco. (...)


Mas a tarde de hoje está triste por causa de Chico Antônio que partiu. Não eram bem 17 horas, foi encilhar o cavalo, pôs espora, o chapelão de aba larga sempre escurentando a cara simpática, veio se despedir de mim. Careceu dizer o que sentia e trouxe o ganzá porque só pode contar os sentimentos cantando! (...)


E falou coisas duma comoção tão simples, ditas com a verdade verdadeira dos homens simples; disse que quando eu chegasse na minha terra havia de ter saudades dele, mas que se voltasse por estas bandas que o mandasse chamar e ele viria. Então principiou se despedindo dos nossos trabalhos, do papel em que eu assentara as melodias dele, da tinta, do piano, tudo. (...)


"Adeus sala! adeus cadera!

Adeus piano de tocá!

Adeus tinta de iscrevê!

Adeus papé de assentá!

- Boi Tungão!...”


Estava despedido. Estendeu a mão comprida num adeus de árvore e lá foi-se embora no passinho esquipado come-légua dos cavalos daqui. (...)


MÁRIO DE ANDRADE, O TURISTA APRENDIZ, São Paulo, Duas Cidades, 1976. p. 273-79.



CHICO ANTÔNIO


O coqueiro Chico Antônio, de batismo Francisco Antônio Moreira, nasceu em Cortes, nas cercanias de Pedro Velho, nos primeiros anos do século.


"Meu pai nunca se importou com a minha idade. Mas foi ... num sei se foi ... quem sabe é um compadre meu que mora lá em Pedro Velho ... Cumpadre Pedro, quantos anos você tem? Cumpadre Chico, eu já tou com mais de setenta, e você? Eu disse: Num sei, a mesma coisa, que nós era menino, nós dois brincamo junto, a mesma coisa. Ele disse: A mesma coisa".


Ele possui dois documentos oficiais: a certidão de casamento e uma carteira profissional tirada no Rio de Janeiro, constando, respectivamente, 1904 e 1908 como data de nascimento. Ele andará com seus oitenta anos, a julgar pela estimativa de Mário de Andrade, em 1929:


"Meio curvo, com seus 27 anos esgotados na cachaça e noites inteiras a cantar .. ."


Seguindo os caminhos de seu pai, Antônio Francisco Moreira, sua vida foi sempre ligada à terra, à roça. Primeiro na casa do pai, depois na sua.


"Nunca arriou de eu, no fim do ano, num ter 50 braça de roça madura. Ah, isso não!"


Bem jovem, passou cerca de um ano trabalhando no Engenho Bom Jardim (no município de Goianinha), de propriedade da família de Antônio Bento de Araújo Lima. Neste engenho deu-se, em janeiro de 1929, o encontro entre Chico Antônio e Mário de Andrade.

Na meninice, seis anos de escola.


"Eu tive seis anos de escola, em cada ano uma escola. Aqui mesmo, em Pedro Velho. Tive que fazer, mas eu não me levava na leitura não, só me levava no ganzá. Meu pai me dava, tinha vez de eu apanhar. Dizia: Chico, vai ler. Deus me livre! Chorava, me batia, dizia: Pois vai apanhar! Mas quando eu saí da escola, ah, eu era um doutor na pena, né? (. . .) Lia, escrevia, fazia tudo".


Mas a lição aprendida não serviu para grande coisa. Chico voltou ao analfabetismo.


"Esqueci tudo. Só sei do A porque tem um gancho".


Chico Antônio, quando não estava na labuta, preferia o coco, esta velha e autêntica manifestação da cultura nordestina.


"Isso aí é negócio do tempo ainda que Adão andava no mundo". "Home, eu peguei a cantar com uns 12 anos"

.

O trabalho não impedia o crescimento da vida de cantador. Arando ou roçando, o coco ia ocupando o pensamento do coqueiro, enquanto esperava o tempo livre para as andanças e para os desafios.


"Roçando capim, tava cantando também ... nos sábado e nos domingo, brincava".


Claro que o pai não incentivava os gostos boêmios do filho. Achava mesmo que ele não tinha grandes pendores para o canto e para o repente.


"Eu fui escutar o homem, cheguei la, escutei e digo: Quem se eu dou, se eu for cantar mais esse nego. Mas eu num sabia nem abalançar o ganzá. Fui, pedi a minha mãe: Peca dinheiro a meu pai mode eu comprar uma caixa pra mandar fazer um ganzá. Ela disse: Eu num peso não! Meu pai diz: Não! Outra coisa eu dava, mas pra cantar coco num dou, que eu sei que ele num canta nada. Mãe disse: Não, deixa o menino ir. (.) Quando foi sábado nos fomos. Era gente!. . . Ai, eu fiquei com o maracá na mão, sem assunto, sem nada ... E o compadre Joaquim disse: Pegue esse maracá e sustente ele na mão e arresponda meus cocos. Ah, eu me desmanchava em repente tanto, era abrir a boca, tava feito. Cantemos ate as oito horas do dia".


Desabusadamente, canta e vence Zé Fula. E vai cantando, desafiando Mane Matias, Cícero Matias, Antonio Matias, o preto João Perigoso, Domingos Gregário e tantos quantos tinham fama de coqueiros garantidos. Canta e vence, e faz forma e escola. Muitos começam a cantar os cocos de Chico Antonio. Mas nem com os cocos aprendidos podem com ele, que, espertalhonamente, nunca repete os mesmos versos e as mesmas toadas.


"Mudo, eu num sei o que . . . Você vê muito cantador sabido . . . é preciso mudar que é mode encarar ele, porque se eu cantando só uma vez, com pouco mais quem to cantando são eles, e eu num tou cantando mais nada".


Não ha terra nas redondezas onde Chico não tenha ido plantar seu nome.


"Eu, quando era quinta-feira, eu ficava fazendo uma boca, fincava por esse mundo aqui de sertão, Jardim do Siridó, Caiacó, remexia tudo".


Logo Chico encontra Dona Amélia, sua companheira ha mais de cinqiienta anos. Ela vinha de Lagoa de Dentro, perto de Guarabira, na Paraíba.


"Eu me engracei dela e ela de mim, era hora, digo: Num tem jeito! Fui, comprei uma casa, tinha dois cavalo junto; assim eu casei".


Seu pai, não o queria no coco. Era homem serio.


"Meu pai num cantava, num bebia, num fumava, nada. Eu cantava, eu bebia, eu fumava".


Mas quando o viu cantador, exigia dele que fosse o melhor.


"Meu pai entrou de cara fechada, foi e disse: Chico, venha cá. Como é, já deu o meu recado? Não sinhô. É pra dar logo. Quando findar-se um coco e tirar outro, no outro logo é pra dar. Meus negócio são) pô-pô".


Dona Amélia já o conheceu coqueiro. E, ao que parece, nunca se meteu na vida dele.


"Amélia? Se gostasse, ficava calada, e se não gostasse, ficava por isso mesmo . . . Que ela num me empatava, num era?"


Esperava-o, paciente; e ele sempre voltava para a casa.


Em janeiro de 1929, trabalhando no Engenho Bom Jardim, foi levado a cantar para Mario de Andrade. A emoção do poeta do Sul esta bem descrita em O turista aprendiz e em outros textos e estudos de Mario de Andrade. Foi um deslumbramento. Mario aproveitou o tempo, fazendo o coqueiro cantar sem parar, anotando toadas e versos. E, para melhor grafar o ouvido, Mario ia tentando imitar o coqueiro.


"Ave Maria! Ele passava o dia todinho assim no sol, na casa do coronel Lima, nos andando daqui dessa porteira pra outra, eu cantando e ele respondendo... Num era bem aprumado, ele... Eu também explicava ele: doutor, o senhor responda esse coco assim-assim... "Agora, nessa cantoria que eu fiz lá mais ele, eu comi dobrado quase que deu água... Porque eu sou um sábio, mas uma coisa que se faz de repente, só o vento carrega, num é não? E o camarada fazer um verso de repente, e meia hora dum relógio o camarada dizer: Chico, aquela palavra que você disse inda agorinha... Molhei de suor, chegava a pingar...”.


Mario, no entusiasmo, desejou mesmo trazer o coqueiro para o Sul. E as lembranças do coqueiro, no mundo da fantasia, trazem ate hoje a ideia do que o poeta lhe teria dito.


"O doutor Mario de Andrade teria me levado, mode eu cantar..." "Chico, quando você passar vamo ali mais eu... Se você passar um ano, o dinheiro que você ganha, você nem sabe mais quanto é que da".


Chico não partiu com Mario de Andrade. Desceu ao Sul bem mais tarde, para tentar a vida no Rio de Janeiro.


"Trabalhei no Bonsucesso, trabalhei no Botafogo, no Jacarezinho..." "Fui morar no Manguinho, era quase dentro da maré, que quando a maré enchia, botava cá na rodage...”.


E a lembrança de Mario e de outros amigos importantes o acompanha.


"Eu dava murro de abrir os peito, tirando lama dentro do buraco afora... Agora, porque quis. Mas tinha homem que nem cumpadre Antonio Lima e... doutor Mario de Andrade que, se dissesse: Hoje eu num quero mais pegar no pesado... tudo eu tinha, mas tive medo, num sei o que foi aquilo".


Chico volta a sua terra. Volta a agricultura e ao coco de fim de semana e de grandes festas. Seu nome continua grande. Dele, chegou-se mesmo a dizer que tinha parte com o 'maiorá'. Mas vem a idade, a cabeça continua ótima, mas as pernas já não aguentam o peso e o caminhar. O coqueiro, que tinha fama de cantar com movimentos de beleza envolvente, agora anda com dificuldade. Para o trabalho na terra, os problemas são grandes. Chico passa por dificuldades. Pensa em deixar seu sitio e ir viver na cidade.


É quando, aos quase oitenta anos, em 1979 é redescoberto por Deífilo Gurgel. Por suas mãos, Chico Antonio é levado a Aloísio Magalhães que, como Mario de Andrade, porém mais de cinquenta anos depois, fica maravilhado com a arte deste cantador. E pede que algo se faca por esta arte e por Chico. Este disco é parte do esforço que responde ao desejo de Aloísio.


Cinquenta anos passados, e Chico Antonio ainda se lembra de Mario de Andrade e descreve com detalhes seu encontro com o mestre do Modernismo. Fica pensando se não teria sido melhor segui-lo para o Sul. As dificuldades de hoje fazem-no imaginar como sua vida teria sido diferente.


"Se o doutor Mario fosse vivo, eu era outro".


PEDRO VELHO PORTEIRAS


Segundo informa Luis da Câmara Cascudo, a cidade de Pedro Velho esta situada no sudeste do Estado do Rio Grande do Norte, bem perto da fronteira com a Paraíba.


A cidade nasceu no Sitio Cuitezeiras, assim chamado por causa da profusão de arvores de cuités. No pouso de comboios carregados de algodão, açúcar e farinha, vão arrumando-se as primeiras casas e vendas da povoação. Com a passagem da linha férrea pela região, ligando o povoado a capital da província, por volta de 1882, e com o consequente aumento do movimento, vem major progresso e cria-se oficialmente a Vila de Cuitezeiras, vila muito próspera, com boas fazendas de criação e engenhos. Em 1901, uma enchente particularmente violenta do rio Curimataú destrói a vila, obrigando a população a instalar-se em terreno mais elevado. Depois de quase dois anos de trabalho duro, instala-se em 1902 a Vila Nova de Cuitezeiras, ou simplesmente, Vila Nova. Em 1908, um ano após a morte de Pedro Velho, uma das maiores personalidades da política republicana norte-rio-grandense, é dado seu nome ao município, ainda que não houvesse nenhuma ligação entre o político e a vila.


Saindo da cidade, uma estreita estrada de terra vai margeando o rio. Estrada que, com qualquer chuva, torna-se intransitável para carros. Ai este a região das Porteiras, com uma igrejinha e diversas pequenas propriedades rurais. A uns dez quilômetros do início desta estrada este o pequeno sitio onde vive Chico Antônio.


COCO


"Dança popular nordestina, cantado em coro o refrão que responde aos versos do cantador, 'tirador de coco' ou 'coqueiro', quadras, emboladas, sextilhas, e décimas. É canto-dança das praias e do sertão." A mais antiga referência sobre o canto no Brasil é da segunda metade do século XVIII, quando chegou a ser dança de salão acompanhada pela cítara. Há várias discussões sobre a origem do coco.


O coco parece provir não diretamente do batuque africano, mas de uma combinação de formas desigualmente evoluídas dele - o samba, que ainda se dançava, e o baiano, já no seu ocaso. Mário de Andrade considera o coco de "próxima ou remota origem africana". Seus elementos formadores seriam africanos e ameríndios, apesar de quem o considere inteiramente nacional. Em verdade, parece haver uma mistura harmoniosa da música indígena com a negra. Diz Luiz Heitor Corrêa de Azevedo: "é o verdadeiro curiboca da nossa música."


A dança do coco foi efetivada em Alagoas em fins do século XIX e somente aos poucos conquistou a região nordestina. Embora a coreografia seja semelhante em todos, existe uma variedade de tipos de coco, tomando suas designações dos mais diversos elementos: dos instrumentos acompanhantes (coco-de-ganzá, coco-de-zambê), da forma do texto poético (coco-de décima, coco-de-oitava); do lugar onde é executado ou a que texto se refere (coco-de-praia, coco-de-usina); do processo poético-musical (coco-de-embolada).


A forma do coco geralmente é estrofe-refrão. O refrão ou segue a estrofe ou intercala nela. Poeticamente, apenas o refrão é fixo, constituindo o elemento caracterizador do coco. As estrofes, quase sempre em quadras de sete sílabas, são tradicionais ou improvisadas. A estrofe solista, principalmente nos chamados cocos-de-embolada, revela com freqüência o corte poético-musical da embolada. O coco-de-embolada tem na estrofe a presença da embolada, que, como diz Mário de Andrade, é "um processo rítmico-melódico de formar a estrofe em determinadas peças nordestinas, coreográficas ou não."


Os cocos obedecem geralmente ao compasso binário ou quaternário.


Os instrumentos que acompanham o coco são geralmente de percussão, como pandeiro, ganzá, zambê, bombo e, nos bailes mais pobres, simples caixotes que servem de bateria animada.


Como explica Cascudo, "Ganzá, para o Norte e Nordeste, é o maracá, ovóide, piriforme ou cilíndrico, de folha-de-flandres, com pedrinhas ou grãos de chumbo. Chamam também de pau-de-semente, na cidade de Natal e litoral norte-sul do Estado do Rio Grande do Norte. A forma do ganzá existe entre os ameríndios (maracá) como na África, descritos por Cameron, nas mãos dos feiticeiros."


EMBOLADA


A embolada é um processo poético-musical que ocorre em várias danças, como o coco, em cantos puros, como o desafio e que pode também ter vida independente. Théo Brandão, que estudou as emboladas com maior cuidado, acredita que tenham surgido também em Alagoas e como o coco espalhando-se depois pelos outros Estados do Nordeste, onde é mais frequente na zona litorânea. A adaptação deste gênero de cantoria ao coco foi um processo lento, mas constante. A aceitação da embolada como texto-melodia do coco produziu alterações de enorme significação na sua coreografia. A embolada tem como características: melodia mais ou menos declamatória, em valores rápidos e intervalos curtos, variação rítmica, ora canta lento ora acelerado, obedecendo muitas vezes a mesma métrica; ritmo lento geralmente cômico, satírico ou descritivo, crítica de costumes, ou uma sucessão lúdica de palavras associadas pelo seu valor sonoro. Geralmente o texto é cheio de aliterações e onomatopeias, de dicção complicada, agravada pela rapidez do movimento. A embolada pode ser de uma volta — o coro canta após cada quadra — ou de duas voltas — o cantador utiliza a estrofe de oito versos. Para Luís da Câmara Cascudo, a embolada tem como características o refrão e a estrofe de seis versos, enquanto para outros folcloristas é um tipo de martelo, sendo a estrofe de dez versos com cinco sílabas. A grande característica da embolada é a improvisação através do desafio.


Os bons coqueiros de embolada apreciam esta modalidade do canto porque suas dificuldades valorizam-lhes as qualidades de improvisador. É um desafio que o cantador de coco aceita e procura desincumbir-se num maior espaço de tempo, enquanto a inspiração permita. Enquanto a "língua não bombeia", ele sacode o ganzá em busca do som e do ritmo que estimulem a sua imaginação. Há grande inteligência nas improvisações e os cantadores provocam, irritam e forjam situações difíceis, até que aparece uma nova fase de maior provocação através da poesia e musicalidade da embolada. Os temas algumas vezes são conhecidos ou tomados na hora, variando entre cantos de amigo, de amor, de provocação, jocosos. Nos desafios de coco-de-embolada os cantadores se referem ao final da apresentação com os termos 'derrotado' e 'vencedor'. A gente nota uma alegria se estampar na fisionomia do cantador, quando depois de prolongados e violentos debates, é chamado vencedor.


Os grandes mestres da arte difícil de cantar coco têm o seu estilo fazendo escola e os cantadores novos vão imitando de acordo com sua simpatia.


Como diz Mário de Andrade, "temos uma dose formidável de alegria, de esperteza, de pagode e de energia reagindo nos cocos, nas emboladas, nos desafios e outras formas de canto. E quando o cantador no seu cantar chora amores, solidões e aspereza de vida ou trabalho, no geral caímos na malincolia paciente e conformada. Na tristura de deveras triste só raramente que caímos. Se faz brilhações pasmosas na carreira das emboladas, se despenca em jogos de pentassílabos e até tetrassílabos afobados na carretilha dos martelos contadores de casos pansudos, êta mundo!”.


CHICO ANTÔNIO E SEU MEIO

Este disco é o primeiro resultado do projeto Chico Antônio e seu Meio, realizado pelo Conservatório Brasileiro de Música do Rio de Janeiro, em convênio com o Instituto Nacional do Folclore — Funarte.


Este projeto responde a desejo pessoal de Aloísio Magalhães, no entusiasmo do encontro com o coqueiro Chico Antônio. Ele visa a documentar a realidade cultural da região onde vive o cantador. Além dos repentes deste coqueiro, dos quais este disco dá curta mostra, será feita documentação de outras realizações musicais da comunidade (cantos-de-roda, romances, aboios, canções de ninar etc.), da religiosidade, dos hábitos alimentares, das ervas-medicinais, do trabalho. Os resultados da pesquisa, além da difusão nacional que couber, retornarão à própria comunidade e ao Estado do Rio Grande do Norte, particularmente através das escolas, em forma de um pequeno folheto e de figurinhas com fotografias.


Para o levantamento de dados, foi constituída equipe de trabalho: Cecília Conde e José Maria Neves (coordenadores), com a colaboração de Conrado Silva, Deífilo Gurgel (da Fundação José Augusto e da Universidade Federal do Rio Grande do Norte) e Selma Bezerra de Souza e Silva (da UFRN). O apoio da Universidade Federal do Rio Grande do Norte foi especialmente importante, tendo ela assegurado a hospedagem dos pesquisadores em Natal e o transporte da capital até o sítio de Chico Antônio. Para a realização do folheto, a equipe contará com a colaboração de professores e de alunos do curso de educação artística desta universidade.


A pesquisa local foi realizada em duas etapas. A partir de informações prestadas por Deífilo Gurgel, que localizara Chico Antônio, foi planejada a primeira viagem de reconhecimento, com a participação dos coordenadores do projeto, da diretora do Instituto Nacional do Folclore, da Funarte e de Deífilo Gurgel. O arquivo pessoal de Deífilo sobre Chico Antônio, colocado à disposição da pesquisa, foi de fundamental importância em todas as fases do projeto. Entre 26 e 28 de agosto, a equipe visitou a casa de Chico Antônio e de seu filho Antônio, gravou entrevistas e cocos cantados por ele, entrevistou seus familiares e vizinhos.

Este primeiro contato já mostrou o clima que teria a pesquisa. Os moradores de Porteiras compartilharam tudo com a equipe de pesquisadores, abrindo as portas de suas casas, fazendo-a participar de sua mesa. Cada um tinha algo a contar, pedaços de sua vida, suas lembranças. A cada dia aumentava o número de pessoas atraídas pelo cantar de Chico Antônio. Esta visita acabou tendo clima de festa, em torno da personalidade forte do coqueiro.


Um mês depois, entre 27 e 29 de setembro, a equipe voltou ao local, acompanhada agora por Conrado Silva e pelo fotógrafo Luiz Peregrino. O objetivo era concluir o trabalho de documentação musical e fotográfica. Uma vez mais, a equipe participou da vida da comunidade.


Para chegar à casa de Chico Antônio, foi utilizado carro da UF RN. Na verdade, seria impossível realizar o trabalho sem contar com meio próprio de locomoção. Como seria difícil localizar a casa de Chico Antônio sem um guia seguro como Deífilo Gurgel. Ainda que não fique tão longe de Natal, Pedro Velho é local de acesso bastante complicado. E de Pedro Velho até Porteiras há ainda bom pedaço de terra a vencer.


A casa de Chico Antônio está a uns cinqüenta metros da estradinha de terra que corta o Sítio das Porteiras. Para ir até a casa de seu filho Antônio, para onde desejou levar a equipe no segundo dia de trabalhos, há uma boa marcha a fazer, morro acima. Antônio tem sua casa nos fundos do sítio de Chico Antônio. Casa maior que a do pai, com mais conforto (a casa de Chico é pequena e de taipa), com boa roça e casa de farinha. Não há luz elétrica na região, sendo a iluminação feita com lamparinas e tochas de querozene. Por isto, as gravações foram feitas com recursos a pilhas e baterias.


O movimento nas casas, durante todo o trabalho, foi muito grande. Os vizinhos participaram de tudo. Logo após a chegada dos pesquisadores, crianças e adultos das redondezas vinham chegando, a cavalo ou a pé. E as gravações foram feitas na medida em que Chico ia lembrando seus cocos. Sua cantoria ia fluindo quase como se ele estivesse numa feira. Por isto mesmo, a gravação tem as qualidades e defeitos de documentação sonora realizada nestas condições.


Chico não costuma cantar sozinho. A própria estrutura do coco exige a participação de respondedor ou de outro coqueiro. Chico Antônio, apesar de seus problemas de saúde, aproveitou a hora do almoço para ir buscar um vizinho coqueiro, o Paul frio (Paulírio Sebastião da Silva, 64 anos, nascido em Pedro Velho, agricultor, cujo filho Sebastião, também presente, o acompanhou na visita e o acompanha cantando coco). E, com Paulírio, Chico cantou horas a fio, nos dias em que a equipe de pesquisa esteve em sua casa.

A figura de Chico Antônio surpreendeu a todos. Está rijo, aos seus oitenta anos. Sua lucidez e sua memória são impressionantes. É capaz de contar com detalhes coisas passadas, como é capaz de sustentar um coco com real vitalidade. Mais: ele se transfigura quando canta. Mas os problemas da idade se fazem sentir: o reumatismo paralisou quase por completo uma de suas pernas, e ele queixa-se de doença. Sua resistência vocal já é menor, por problemas de falta de ar.


Feitas as gravações, a equipe teve que optar por linha de ação a seguir. A ideia inicial, presente no título do projeto — Chico Antônio e seu Meio — apontava para um disco que combinasse cocos cantados por Chico Antônio e outras manifestações musicais da comunidade. Para documentar toda a riqueza, tanto da cantoria de Chico como das músicas cantadas por parentes e vizinhos, seriam necessários vários discos. Levando em conta também a carência de material documental sobre o coco, a equipe de pesquisa optou por dedicar este disco ao coqueiro Chico Antônio, aqui respondido ou desafiado por Paulírio. Fica para futuro próximo a realização de novo disco, com canções, romances e aboios cantados pelo pessoal da região. Desde 1980, aliás, havia projeto da Fundação José Augusto de registrar em disco os cocos de Chico Antônio.


Mais que tudo, este disco pretende contribuir para a preservação da memória cultural brasileira. É um retrato sem retoques de notável exemplo de sobrevivência: do coco, enquanto gênero musical, e de um de seus cultores mais ilustres, o único que mereceu estudos pormenorizados por parte de Mário de Andrade, que fez dele até personagem de dois textos de ficção.




BIBLIOGRAFIA


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Seleção de textos e textos originais:

CECÍLIA CONDE

JOSÉ MARIA NEVES



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